quarta-feira, janeiro 14, 2009

herberto helder

VI


Estás verdadeiramente deitada. É impossível gritar sobre

esse abismo onde rolam os cálices transparentes da primavera

de há vinte e dois anos. Quando aperto as pálpebras
ou descubro o teu nome como uma paisagem,

só há grutas virgens onde os candelabros se apagam.
Mãe, pouco resta de ti na exaltação do mundo. Às vezes
misturas-te um pouco nos terrores da noite ou olhas-me,
vertiginosa e triste, através

das palavras.


No outro lado da mesa estás inteiramente
morta. Parece que sorris de leve no meu
pensamento, mas sei que é apenas

a solidão espantada. Como pudeste morrer
tão violenta e fria,

quando os meus dedos começavam a agarrar-te
a cabeça inclinada dentro

das luzes? Não podes levantar-te dos retratos antigos
onde procuro afogar-me como uma criança

nocturna. E não atravessaremos junto as cidades redentoras,
perdidos um no outro, sorrindo

como se estivéssemos debaixo de uma árvore inspirada e eterna.


Conheço algumas cidades da europa e a fantasia vagarosa
da cidade da minha infância.

Tu desapareceste. É um erro

das musas distraídas. Não há guindaste que te levante
do coração das águas

onde apodreceste envolvida no halo do teu amor invisível,
ou recolhida na tua carne rápida, ou

ligeiramente tocada pelo ardor

de uma existência pura. Conheço grandes casas

onde não habitas, flores que cheiro, tarefas
silenciosas que cumpro humildemente, e luzes,
instrumentos de música,

laranjas que devoro sentindo o gosto da vida desde a garganta

às mais finas raízes das vísceras. Tu
desapareceste.

Imagino que seria possível tocares porventura

a minha boca. Tocares-me tão viva ou tão misteriosamente

que eu estremecesse nas traves

da cega inspiração. Poderias estar vergada sobre os meus
ombros até que as lágrimas

na minha boca se confundissem com a ansiosa subtileza
dos teus dedos, e eu me sentisse

perdido entre os pilares e os túneis das cidades
ressoantes.



Depois talvez pudesses vir com o rosto um pouco coberto de poeira,

e os olhos delicados de mulher restituída,

e os pés brilhando sobre os caminhos do meu silêncio exaltado

- talvez

pudesses salvar-me como uma palavra pode
salvar um pensamento, ou uma

breve música pode acordar do abismo inocente
da noite

um instrumento encerrado nas cordas extenuadas.



herberto helder
fonte
assírio & alvim
1998

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