sexta-feira, janeiro 01, 2010

Leon Tolstoi


Sonata a Kreutzer

Leon Tolstoi

I

Estávamos no princípio da Primavera. Havia dois longos dias, e uma não menos longa noite que viajávamos de comboio.

Em todas as estações, passageiros entravam ou saíam do nosso compartimento. Por fim ficaram só três viajantes: uma senhora de meia-idade, feições envelhecidas e feia, de cigarro na boca, gorro na cabeça, e um casacão de corte masculino; um amigo alegre que aparentava quarenta anos, com bagagens novas e elegantes; e, afastado de todos, um homem baixo, de movimentos nervosos; não era velho e os cabelos embranquecidos antes de tempo, ainda se conservavam ondulados. Tinha uns olhos brilhantes e de extrema mobilidade. Vestia um casaco coçado, com gola de cordeiro e com a marca de um bom alfaiate; na cabeça, gorro alto da mesma pele. Sob o casaco, quando o desabotoava, via-se colete comprido e blusa russa bordada.

Tinha ainda outra particularidade. De vez em quando, soltava sons estranhos que se assemelhavam a um soluço ou a um riso abafado.

Durante toda a viagem não dirigiu a palavra a qualquer dos passageiros. Lia, fumava, ou olhava pela janela; bebia chá, comia pão com manteiga que tirava de um saco velho de couro.

Se lhe dirigiam a palavra, as respostas eram breves e secas e o seu olhar ia perder-se na paisagem fugidia. Notei, contudo, que a solidão lhe pesava. Tentei, por várias vezes, falar-lhe.

Parecia adivinhar o meu pensamento, e quando os nossos olhares se encontravam — o que era frequente, pois ocupávamos lugares fronteiros — desviava o olhar e enfronhava-se na leitura. Ao cair da noite o comboio parou numa estação importante. O senhor de cabelos brancos desceu para ir buscar água a ferver e fazer chá novo.

O homem das malas novas e elegantes — um advogado — desceu com a sua companheira para ir ao bufete tomar uma chávena de chá.

Novos passageiros subiram, um velho alto com a barba feita de fresco e a fronte sulcada de rugas, um negociante sem dúvida — envolto numa pelica de lontra, a cabeça coberta por um boné de grande pala. Sentou-se no lugar em frente da companheira do advogado e entabulou imediatamente conversa com um rapaz novo, tipo de caixeiro-viajante, que entrara na mesma carruagem e na mesma estação.

Eu estava perto deles e com o comboio parado pude ouvir alguns

trechos da conversa... Falaram da viagem, do comércio, de uma pessoa que ambos conheciam e, por último, de Nijni-Novgorod.

O caixeiro quis contar o casamento de um negociante conhecido de ambos, mas o velho interrompeu-o para descrever as pândegas em que outrora tomara parte em Kounavino. Evocava essas recordações com certo desvanecimento, persuadido de que essas histórias em nada prejudicavam nem o seu brio nem a sua dignidade. Orgulhoso dessas façanhas contava, como um dia, em Kounavino, estando embriagado, se entregara a tal orgia, que só ao ouvido podia ser contada. O caixeiro, ao ouvir a confidência, riu desabaladamente e, o velho, ria também, mostrando dois dentes amarelados.

A conversa não tinha interesse para mim. Desci para desentorpecer as pernas enquanto não dava o sinal da partida.

Na gare encontrei o advogado e a sua companheira, conversando animadamente.

— Não se demore — disse ele —, o comboio vai partir. Efectivamente, mal eu atingira a cauda do comboio, deram o segundo sinal.

Quando subi para a carruagem, o advogado e a sua cliente prosseguiam a conversa animadíssimos. O velho negociante sentado em frente deles não dizia uma palavra, olhando-os com ar severo e desdenhoso. Quando eu passava, o advogado dizia, sorrindo:

— Ela então declarou ao marido que não podia, nem queria, continuar a viver com ele, tendo-se dado o caso...

Não ouvi o resto. Passava o revisor e entravam mais passageiros. Restabelecido o silêncio, ouvi novamente a voz do advogado, e pareceu-me que a conversa se desviara, de um caso particular, para considerações gerais.

O advogado observava que, a questão do divórcio interessava hoje toda a Europa e que na Rússia, os casos eram cada vez mais frequentes. Sorriu ao notar que era o único a falar e, voltando-se para o comerciante, perguntou-lhe:

— Era questão que não existia nos bons tempos de outrora, não é verdade?

O comboio pôs-se em movimento. Sem responder, o velho descobriu-se, persignou-se, murmurou uma oração em voz baixa, enterrou o boné até às orelhas e disse:

— Existia... mas menos. Hoje não pode ser de outro modo. As pessoas instruem-se de mais.

O advogado replicou. Mas o barulho do comboio, que aumentava de velocidade, impediu-me de perceber. Aproximei-me cheio de curiosidade para ouvir a resposta do velho. A conversa parecia interessar também o meu vizinho — o senhor de olhos brilhantes — que prestava toda a atenção, embora não abandonasse o seu lugar.

— Que culpa tem a instrução? — perguntou a senhora, esboçando um sorriso. — Era melhor o casamento quando os noivos mal se conheciam? — continuou ela, respondendo: — hábito frequente entre as mulheres — não aos argumentos apresentados mas àqueles que podiam ter sido.

— Amavam-se? Poder-se-iam amar? Não o sabiam. A mulher desposava o primeiro que aparecia e habilitava-se, assim, a uma vida de tormento. Isto era preferível? — concluiu, dirigindo-se, mais ao advogado e a mim, do que ao velho com quem principiara a discussão.

— Nos nossos dias há demasiada instrução — repetiu o velho, respondendo à pergunta e olhando desdenhosamente.

— Gostava de ouvi-lo explicar a ligação entre a instrução e as desavenças conjugais — disse o advogado, disfarçando um sorriso.

O comerciante ia responder, mas a senhora interrompeu-o:

— Esse tempo acabou.

— Permita que este senhor exponha as suas ideias — disse o advogado.

— Todas as tolices vêm da instrução — disse o velho em tom categórico.

— Como podem entender-se pessoas que se não amam? — apressou-se a perguntar a senhora, olhando para o advogado, depois para mim e para o caixeiro que, de pé, encostado ao banco, seguia, sorridente, a discussão.

— Só os animais se podem acasalar, segundo a vontade do dono; os homens têm as suas inclinações, as suas simpatias — disse ela com a intenção de ferir o negociante.

— É um erro, minha senhora — disse o velho. — O animal é um animal; ao homem foi dada uma lei.

— Mas como pode o homem viver sem amor? — replicou a senhora, convencida que emitia ideias originais.

— Modernismos — teimou o velho. — Outrora não se pensava em tal.

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